Luís Leiria, Esquerda.net

Review of Os último anos de Marx. Uma biografia intelectual.

Uma visita aos últimos anos da vida de Marx

Alguns dos mais importantes biógrafos de Marx desvalorizaram os seus últimos anos de vida como aqueles em que a atividade intelectual já entrara num declínio, provocado pelas precárias condições de saúde.

Riazanov, por exemplo, escreveu que, de 1881 a 1883, ano da sua morte, Marx perdera a sua capacidade de trabalho criativo, embora nunca tivessem diminuído o “gosto e a capacidade de pesquisa”. Isaiah Berlin afirmou que “nos últimos dez anos de vida, […] Marx escreveu cada vez menos, e aquilo que escrevia era cada vez mais complicado e obscuro.”

O livro “Os últimos anos de Marx – uma biografia intelectual”, agora publicado em português pela editora Parsifal, contraria esta ideia e mais, apresenta-nos um Marx que mantinha a curiosidade e a capacidade de trabalho suficientes para desbravar novos caminhos e repensar ideias que pareciam inabaláveis, e isto apesar dos problemas de saúde que enfrentava.

Investigador e professor da Universidade de York, em Toronto, o italiano Marcello Musto é um dos académicos que se têm debruçado sobre o material que está a ser publicado e preparado para edição nos últimos anos. Trata-se de um novo impulso dado à publicação das obras completas de Marx e Engels, conhecida pela sigla MEGA2, de Marx-Engels-Gesamtausgabe, que foi retomada em 1998.

São milhares de páginas, que constituirão novos volumes e vão trazer ao público todos os manuscritos preparatórios de “O Capital”, novas versões de obras como “A Ideologia Alemã”, cadernos de notas (mais de 200), com resumos (compêndios) dos livros lidos por Marx, acompanhados das suas reflexões sobre eles; todas as cartas recebidas por Marx e Engels (e não só as que eles escreveram) e muitos mais materiais que, em grande parte, encontravam-se disponíveis só em alemão e por isso estavam ao alcance de “um círculo restrito de académicos”, explica Musto.

“Expulso pela porta da frente, entra pela janela das traseiras”

A retomada destas edições corresponde a um novo interesse pela obra de Karl Marx, particularmente evidente desde a grande crise financeira de 2008. “Há uma velha história sobre Marx: expulsem-no pela porta da frente, que ele volta a entrar pela janela das traseiras”, comenta Immanuel Wallerstein (1930-2019), numa entrevista publicada em anexo neste volume.

Marcelo Musto apresenta-nos o que ele chama de “biografia intelectual” dos três últimos anos da vida de Marx, prometendo complementá-la com outro trabalho sobre o mesmo período, mas exclusivamente teórico. Nesta “biografia”, o autor descreve-nos os manuscritos produzidos por Marx de 1881 a 1883, que vão desde o estudo aprofundado de novas disciplinas, como a antropologia, à releitura da teoria da transição para o socialismo suscitada por uma questão concreta apresentada por uma revolucionária russa, ao comentário político de atualidade, onde ressalta o interesse do velho revolucionário sobre países como a Irlanda e a sua luta de libertação – que recebe o apoio de Marx – ou a sua firme oposição à opressão colonial na Índia, no Egito e na Argélia.

Estes documentos, argumenta Marcello Musto, evidenciam “o oposto de um autor eurocêntrico, economicista e absorvido exclusivamente pela luta de classes”.

Os manuscritos são apresentados no seu contexto histórico e da vida de Marx, que o autor sintetiza numa curta cronologia.

O escritório de Marx

Uma curiosidade desta biografia é a descrição das condições em que Marx produziu a sua monumental obra. A escrivaninha onde ele trabalhava mal tinha espaço para o abajur verde, as folhas onde escrevia e alguns livros dos quais transcrevia as citações que lhe interessavam. Diante desta escrivaninha, havia outra mesa coberta de livros e papéis, numa aparente desordem onde, no entanto, Marx localizava com precisão e rapidez o livro ou o caderno de que necessitava. Para Marx, contava Lafargue, os livros eram “instrumentos de trabalho, não objetos de luxo. ‘São meus escravos e devem obedecer à minha vontade’, dizia. Maltratava-os sem receio […], dobrava as pontas das páginas, cobria as margens com sinais a lápis, sublinhava-os. […] Graças ao método que empregava para sublinhar, conseguia reencontrar com a maior facilidade a passagem procurada num livro”.

As paredes do escritório estavam cobertas por uma “muralha intransponível de estantes” com secções de Economia (a mais fornecida), de Teoria Política, de História e de Filosofia, e ainda uma de Literatura. Quanto a idiomas, os volumes em alemão constituíam cerca de um terço do total, ocupando as obras em inglês e em francês um quarto cada. O restante espaço era ocupado na sua maioria por livros em russo, língua que Marx aprendera a partir de 1869 “para poder estudar diretamente as obras que descreviam as transformações em curso naquele país”.

Segundo Lafargue, Marx “trabalhava caminhando. Sentava-se apenas por breves instantes, para pôr no papel aquilo em que havia pensado enquanto perambulava.” Um divã de couro propiciava o repouso depois de tantas horas debruçado na escrivaninha ou caminhando às voltas no escritório.

Contra os esquemas: o caso das comunas rurais na Rússia

Um dos capítulos mais interessantes do livro é o que se refere à discussão sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e mais especificamente à atitude dos socialistas face às comunas rurais, onde regia a propriedade comunitária pré-capitalista.

Parece tratar-se de uma discussão muito específica e de importância limitada, mas não é. Porque o que estava em causa ia muito além do destino de um tipo de propriedade arcaica e da política que os socialistas deviam ter em relação a ela. A discussão de fundo era sobre uma interpretação esquemática de Marx que, como veremos, era totalmente alheia ao seu espírito crítico, interpretação essa que defendia que todos os países seriam forçados a passar pela fatalidade histórica de uma “etapa” de desenvolvimento capitalista antes de poderem pensar em socialismo, independentemente das suas características próprias.

A questão nasceu numa carta, de fevereiro de 1881, que a revolucionária russa Vera Zasulitch enviou a Marx, pedindo-lhe uma opinião sobre o debate acerca do possível destino da comuna rural na Rússia, questão que ela considerava ser “de vida ou de morte” para os militantes russos.

O debate era resumido desta forma: de um lado, havia os que consideravam que, libertas das exigências do fisco, dos pagamentos à nobreza e da administração arbitrária, as comunas rurais poderiam desenvolver-se pela via socialista, isto é, organizar a produção e distribuição de produtos em bases coletivistas; e neste caso, “os socialistas revolucionários devem envidar todos os esforços em prol da libertação da comuna e do seu desenvolvimento”, escrevia a militante russa, partidária desta argumentação.

A ela se contrapunham os defensores da ideia de que a comuna estava destinada a perecer, engolida pelo capitalismo, passando as terras dos camponeses para as mãos da burguesia, devendo por isso os socialistas revolucionários “fazer propaganda apenas entre os trabalhadores urbanos”, sendo que os camponeses chegarão às cidades, “em decorrência da dissolução das comunas”, “em busca de salário”. Os que defendiam esta posição, explicava Zasulitch, diziam-se “marxistas” e alegavam basear-se em Marx para afirmar a inevitabilidade do perecimento da comuna rural.

Assim, a revolucionária russa pedia uma resposta em que Marx expusesse as suas ideias sobre o possível destino da comuna rural e sobre “a teoria da necessidade histórica de todos os países do mundo passarem por todas as fases da produção capitalista”.

A importância que Marx deu à questão foi tal que escreveu três esboços, todos eles muito longos, até por fim enviar a Zasulitch uma resposta mais curta. Nela, Marx negava conhecer os “marxistas” mencionados pela militante russa, adiantando que os russos seus conhecidos tinham pontos de vista “totalmente opostos” ao que ela descrevera. E esclarecia que quando dissera que ao longo da história europeia a propriedade comunal desaparecera com o crescente progresso social, ele se baseara exclusivamente nas experiências da Europa ocidental.

Uma revolução para salvar as comunas rurais

Para Marx, não era forçoso que o itinerário histórico da comuna agrícola da Rússia fosse o mesmo. Lembrando que a Rússia era “contemporânea de uma cultura superior e encontra-se ligada a um mercado mundial, no qual predomina a produção capitalista”, Marx afirmava que a comuna rural estava em condições de “incorporar as conquistas positivas realizadas pelo sistema capitalista sem passar pelas suas forcas caudinas”1

Referindo-se aos que defendiam que o capitalismo era uma etapa irrenunciável para a Rússia, Marx ironizava perguntando se a Rússia também teria de passar por um longo período de incubação da indústria mecânica para ter acesso a máquinas, barcos a vapor e ferrovias.

No caso da comuna rural russa, sustentava Marx, a questão não era de um problema a resolver, mas “pura e simplesmente de um inimigo a derrotar. Para salvar a comuna russa é preciso que haja uma revolução russa.”

No ano seguinte, Marx voltaria ao tema no Prefácio à nova edição russa do “Manifesto do Partido Comunista”, escrito junto com Engels. Neste notável texto, o destino da comuna rural é associado ao da luta proletária dos países europeus: “se a revolução russa se constituir no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista”.

Anos mais tarde, em 1905, Trostsky formularia a teoria da revolução permanente, cujas origens são atribuídas a Aleksandr Parvus. Não sabemos se Trotsky conhecia a carta a Zasulitch, o que é improvável pois esta nunca terá chegado à destinatária; mas conhecia sem dúvida o Prefácio de Marx e Engels de 1882. A argumentação do revolucionário russo vai exatamente no mesmo sentido (esta última opinião é do autor destas linhas e não consta do livro que estamos a resenhar).

“Aquela estupidez do salário mínimo”

Outra curiosidade deste livro é a publicação, em apêndice, do programa da Federação do Partido dos Trabalhadores de França, escrito por Marx, por Engels e por Jules Guesde em maio de 1880 e adotado no congresso em Havre, em novembro do mesmo ano. Referindo-se a ele, Marx dizia: “… a parte económica desse documento muito breve contém – afora algumas linhas introdutórias que definem, em poucas palavras, o objetivo comunista – apenas as reivindicações que brotaram espontaneamente do seio do movimento operário. Ter feito os trabalhadores franceses descerem das suas nuvens verbais para o chão da realidade foi um passo realmente importante, ainda que a coisa tenha suscitado a indignação de todos aqueles teorizantes franceses que ganham a vida ‘fabricando nuvens’”.

A redação do programa, porém, não foi totalmente pacífica porque Marx opunha-se à reivindicação de garantia de um salário mínimo. A filha mais velha de Marx, Jenny Longuet, relatou assim a discussão entre o pai e Guesde numa carta enviada ao marido, Charles Longuet: “Em relação à questão da garantia de um salário mínimo, talvez te interesse saber que o pai fez de tudo para convencer Guesde a não o incluir no seu programa, explicando-lhe que uma medida desse tipo, caso fosse adotada, levaria ao resultado de que, com base nas leis económicas, o mínimo garantido se tornaria um máximo. Guesde, no entanto, manteve-se inflexível, alegando que assim se poderia conquistar, de todo modo, certa influência sobre a classe trabalhadora.”

Engels referiu-se à questão como “aquela estupidez do salário mínimo”, e Marx, como sempre, não poupava palavras: “Com exceção de algumas asneiras, como o salário mínimo fixado por lei, etc., que Guesde achou necessário proporcionar aos trabalhadores franceses, apesar dos nossos protestos (…)”

 

1O termo “forcas caudinas” refere-se à Batalha das Forcas Caudinas, ocorrida em 321 a.C., e é usada no sentido de derrota humilhante.

Published in:

Esquerda.net

Date Published

5 October, 2020

Author:

Luís Leiria